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EDITORIAL: Absolvição criminal por qualquer fundamento vincula processo administrativo: o dogma liberal da separação de poderes.

  • felipejosephadv
  • 16 de fev.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 17 de fev.

Decisão é do Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2020.

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Questão tormentosa no Direito Público Sancionador – expressão usada por Sandro Lúcio Dezan – é a que busca estabelecer os parâmetros para vinculação da sentença do juízo criminal à decisão administrativa em sede de processo administrativo de natureza sancionatória.
É, em verdade, uma das discussões mais tensas no âmbito do Direito Público, e remete à uma série de dogmas que se afirmaram na teoria-geral do Direito, ao menos desde as revoluções liberais do século XVIII, especialmente a ocorrida na França.
Sob o pretexto de evitar a conservação de poder, e valendo-se de leitura distorcida das ideias de Montesquieu (vide crítica bem fundamentada de Vasco Manuel Dias Pereira da Silva, autor português) – e mesmo de Locke -, mas embalados, em verdade, pelo receio em relação ao Poder Judiciário, os revolucionários liberais (burgueses) afirmaram – e fixaram – na teoria do Estado o dogma, ainda hoje cultuado, da “separação de poderes” e suas imediatas derivações: “a independência da instância administrativa” e a “insindicabilidade do mérito administrativo”. Eros Grau recordou em sua obra (O Direito Posto e o Direito Pressuposto) que é a "separação de poderes" um dos dogmas mais bem sucedidos do Estado liberal.
Claus Roxin suscitou a dúvida quanto ao tema: “Una cuestión que hasta hoy no se ha resuelto definitivamente es la de si la juridicidad (conformidad a Derecho) o antijuridicidad de una acción ha de determinarse unitariamente para todo el ordenamiento jurídico, o sea para todos los campos del Derecho, o si por el contrario puede enjuiciarse de modo diferente según las peculiaridades de las materias jurídicas concretas.” Evidenciava, em verdade, uma severa fadiga lógico-jurídica (cf. BORGES, José Souto Maior. Obrigaçao tributária: uma introduçao metodológica. Saravia, 1984.)
No Brasil, há também registro da inquietação em relação ao tema, sem que se tenha chegado, ainda, a um nível satisfatório de estruturação da solução do problema. Vide o que, já em 1973, observava José Cretella Júnior: “Vários e difíceis problemas suscita o ilícito administrativo, quando submetido à apreciação das autoridades administrativas e do judiciário: Qual a relação entre ilícito administrativo e o ilícito penal? Quando, pelo mesmo fato, o agente público é julgado na esfera administrativa e na esfera penal, é ele acusado de dois ilícitos, ou se trata do mesmo ilícito apreciado sob duas óticas diferentes? Nesse caso, se o ilícito é o mesmo, e o agente sofre duas sanções, uma em cada esfera, não está havendo infração flagrante à regra do non bis in idem? Se , ao contrário, são duas figuras autônomas, em que consiste a diferença entre ambas? Se há diferença entre o ilícito administrativo e o ilícito penal, a diversidade reside apenas no grau (diferença quantitativa) ou é ontológica, de natureza, de essência, ou qualitativa? Qual a natureza jurídica de infração capitulada, simultaneamente, em dispositivo estatutário e dispositivo penal? Ilícito administrativo, ilícito penal ou ambos? Quando o agente administrativo, acusado de infração estatutária, é absolvido pelo Poder Judiciário, o reflexo ou não desse pronunciamento, no juízo administrativo, tem seu fundamento na natureza da infração, no modo de apreciação da prova ou no alicerce da acusação?”. O que choca na leitura às aspas de Cretella é identificar que suas indagações são bastante atuais.
As poucas tentativas de respondê-las, o que se deu com maior frequência em sede do Poder Judiciário, em soluções episódicas aos casos que lhes foram concretamente apresentados, não resultaram em mais do que acrescentar interpretações singulares, que, confrontadas - ou melhor, sindicadas - com pressupostos da Filosofia do Direito, exibiram severas falhas, mesmo sobre aspectos dos mais elementares.
A questão não é suficientemente debatida – sequer bem compreendida – pelo Poder Judiciário brasileiro. Não há, aí, porém, um sinal de exclusividade. Alejandro Nieto, jurista espanhol, destacava o mesmo panorama na jurisdição local: “Los jueces obran bajo el principio metódico llamado de estimulo-respuesta: abordan un coníliclo y lo resuelven sin que se les puede exigir más. En estas condiciones, cuando no se cuenta con la referencia de un sistema, las soluciones singulares no se vertebran debidamente y, lo que es más grave, resultan con frecuencia contradictorias.”
Mas também registrou crítica aos legisladores que, tal como no Brasil, não debatem suficientemente a matéria, deixando um enorme vácuo normativo, ocupado por uma jurisprudência que tem produzido resultados não-lineares e paradoxais. Anotou Nieto: “Quien decididamente no está a la altura de las circunstancias es el legislador. [...] Da mucho que pensar la ausência en España de una Ley General de Infracciones y Sanciones administrativas al estilo de lo que ya se ha hecho [...] en Alemania o en Italia.”
A questão remonta à aparente inadequação de conservação de potestades sancionatórias nas mãos da Administração Pública, na transição do "princípio monárquico para o princípio democrático", para conservar expressões de Iñaki Lasagabaster Herrarte, notadamente no Poder Executivo, como avaliou o argentino Agustín Gordillo: “Es obvio que al abandonarse el absolutismo y pasarse a un sistema de división de poderes, es inconcebible que la administración activa ejerza atribuciones que le corresponden al otro poder[...]”. A estruturação liberal do Estado pós-revoluçao, ainda que pregasse uma "separação de poderes", estruturou uma Administração Pública que conservou consigo o arquétipo de poderes típicos do Poder Judiciário, fixando sanções e, para tanto, julgando (assim surge o ato administrativo como modelo administrativo constitutivo de direitos e obrigações, à semelhança da sentença), situação que Vasco manuel Dias considerou uma "verdadeira confusão".
Não-raro o irrefletido discurso sobre a "separação de poderes" acarretou reiteradas situações paradoxais. Ora a Administração Pública reconhece a incidência de excludentes de ilicitude e o juizo criminal, não. E vice-versa. Ora o juízo criminal se manifesta pela atipicidade da conduta, e a Administração, não. Ou ainda pior, ora o Juízo criminal entende pela insuficiência de provas, e a Administração se dá por satisfeita, e formula um juízo condenatório (sancionatório). Note-se, aliás, que a primazia da manifestação do juízo criminal acerca da culpa do agente (Art. 5°; LVII) foi significativamente esvaziada, ao se permitir que a Administração Pública faça seu próprio juízo de valor acerca da "culpa", quanto à conduta que se subsume tanto à lei penal quanto à lei de caráter administrativo. Na espanha, e.g., a postura é impedida pelos Arts. 3° e 4° da Ley de Enjuiciamiento Criminal.
Buscando diminuir as manifestações contraditórias, entre decisões do juízo criminal, e as tomadas em sede de Processos Administrativos Disciplinares (aqui tomados como gênero), o legislador fixou um modelo de vinculação à sentença absolutória. Muitos são os dispositivos legais neste sentido, a exemplo: artigo 126, da Lei n. 8.112/1990, artigo 21, inciso II, § 3º, da Lei n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), artigo 66, do Código de Processo Penal (Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941), artigo 935, do Código de Processo Civil (Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015), e de um sem-número de prescrições semelhantes constantes em diversos estatutos de categorias profissionais do serviço público, códigos de ética, ou instrumentos normativos congêneres.
Regra geral, estabeleceu-se que a sentença absolutória fundamentada na negativa de autoria ou no reconhecimento da inexistência do fato, vincula a Administração em seu decisum. Restou à doutrina a crítica ao modelo de tão restritos critérios de prejudicialidade, assim como o fez – é verdade que em posição não-majoritária – Romeu Felipe Bacellar Filho, ao observar que a restrição de vinculação a (apenas) esses dois paradigmas, estabelece uma estratificação indesejada das sentenças penais absolutórias e negação à garantia de presunção de inocência.
A discussão ganhou fôlego, e novamente, no Agravo Regimental em Embargos de Declaração no Habeas Corpus 2020/0189962-2, de relatoria do Ministro Sebastião Reis,  que fixou o seguinte entendimento: “Embora não se possa negar a independência entre as esferas - segundo a qual, em tese, admite-se repercussão da absolvição penal nas demais instâncias apenas nos casos de inexistência material ou de negativa de autoria -, não há como ser mantida a incoerência de se ter o mesmo fato por não provado na esfera criminal e por provado na esfera administrativa. Em hipóteses como a dos autos, em que o único fato que motivou a penalidade administrativa resultou em absolvição no âmbito criminal, ainda que por ausência de provas, a autonomia das esferas há que ceder espaço à coerência que deve existir entre as decisões sancionatórias.”
A lei n° 14.230/2021 exibiu, uma vez mais, a falta de consenso sobre o afirmado princípio da independência de instâncias, adotando a primazia do juízo criminal, ao incluir no Art. 21 da lei n° 8.429/1992, um modelo de prejudicialidade absoluta da sentença penal absolutória sobre o juízo cível competente para o julgamento dos ilícitos de improbidade administrativa. Semelhante previsão constava, por exemplo, na Constituição do Estado de São Paulo, nos Arts. 136 e 138, §3°.
Longe de esgotar o debate, e mesmo de ser posição majoritária na jurisprudência, o precedente fixado no STJ não evidencia mais do que a falta de uniformização do tema, e, ainda mais grave, o déficit teórico fundamental de se afirmar a “independência da instância administrativa” como corolário da “separação de poderes”, ambos, intimamente vinculados, dogmas bicentenários insertos na Teoria do Direito Público, e mesmo na Teoria do Estado, por uma revolução liberal que buscou alijar o Poder Judiciário do controle dos seus atos.

REFERÊNCIAS:
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (6ª Turma). Agravo Regimental em Embargos de Declaração em Habeas Corpus n. 601.533-SP (2020/0189962-2), de 21 de setembro de 2021. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 1º out. 2021c. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202001899622&dt_publicacao=0 1/10/2021. Acesso em: 14 fev. 2025.
CRETELLA JÚNIOR, José. Do ilícito administrativo. Revista da Faculdade de Direito, São Paulo, v. 68, n. 1, p. 135-159, 1973. p. 136, grifo do autor. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/download/66693/69303/88081. Acesso em: 15 fev. 2025.
DEZAN, Sandro Lúcio. Uma teoria do direito público sancionador: fundamentos da unidade do sistema punitivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo y obras selectas: parte general Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 2017.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 2003.
LASAGABASTER HERRARTE, Iñaki. Las relaciones de sujeción especial. Madrid: Civitas, 1994.
NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. Madrid: Tecnos, 2012.
PEREIRA DA SILVA; Vasco Manuel Pascoal Dias. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996.
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos – la estructura de la teoría del delito. 2. ed. Tradução: Diego Manuel Luzón Peña e outros. Madrid: Civitas, 1997.
 
 
 

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